segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O REGGAE LUDOVICENSE


O REGGAE LUDOVICENSE:
UMA LEITURA DO SEU SISTEMA LÉXICO-SEMÂNTICO
Elaine Peixoto Araújo

RESUMO
O reggae, ritmo nascido na Jamaica, alcançou, nas últimas três décadas, uma popularidade inegável em São Luís do Maranhão. Esta intensa presença do reggae no cotidiano maranhense possibilitou o surgimento de um reggae marcadamente ludovicense, repleto de peculiaridades. No tocante ao campo lingüístico, percebe-se um vocabulário próprio do regueiro maranhense, uma espécie de subcódigo que o legitima. O presente trabalho busca descrever em parte o universo lingüístico do movimento regueiro maranhense, tomando por foco o seu aspecto léxico-semântico e relacionando-o a seu contexto sócio-histórico. Por meio da análise deste sistema lexical específico, busca-se, também, uma melhor compreensão da diversidade de uso da língua materna, bem como a contribuição do reggae para a variedade maranhense da língua portuguesa.
Palavras-chave: Reggae, Léxico, Identidade sociocultural.
INTRODUÇÃO
O reggae, ritmo nascido na Jamaica, alcançou nas últimas três décadas, uma popularidade em São Luís do Maranhão que não se pode contestar. Esta intensa presença do ritmo no cotidiano maranhense possibilitou o surgimento de um movimento regueiro marcadamente ludovicense, repleto de peculiaridades.
No tocante ao campo lingüístico, observa-se um vocabulário próprio do regueiro, uma espécie de código pertencente a este movimento de identidade cultural que o legitima. Em função desta diversidade cultural presente no Estado, que deflagra na comunicação com o aparecimento de diversas variedades lingüísticas, é que se faz essencial investigar as lexias deste grupo específico (desconhecidas até então por muitos maranhenses), para uma melhor compreensão do caráter multidialetal do português brasileiro.
A presente pesquisa objetiva a análise e descrição de parte do universo lingüístico da comunidade regueira ludovicense, tomando por foco seu aspecto léxico-semântico e relacionando-o a seu contexto sócio-histórico. Para a concretização desses objetivos anteriormente citados, foi feito um levantamento bibliográfico referente à temática em questão e, principalmente, foram realizadas entrevistas com apresentadores de programas de reggae, autores de livros, dj’s, donos de radiolas, cantores, bandas, produtores de festas, dançarinos, colecionadores e alguns freqüentadores desse movimento.
As entrevistas foram realizadas com os grandes nomes do reggae porque se percebeu que o processo de criação lexical dava-se nesse sentido; as expressões originam-se, em geral, da boca dessas pessoas influentes e são adotadas, em seguida, pela comunidade regueira. Era necessário, portanto, ir-se direto às fontes.
Feito um arrolamento lexical a partir destas entrevistas, iniciou-se um estudo do vocabulário do grupo, elegendo-se, para este momento, algumas das principais lexias da comunidade regueira, no intuito de investigar a sua etimologia, motivação e emprego.
REGGAE, UM CLAMOR AFRICANO
RE-SIGNIFICADO NAS AMÉRICAS
A história deste gênero musical acompanha o próprio percurso histórico do lugar onde nasceu, a Jamaica, uma ilha do Caribe localizada no centro da América Central. Um lugar repleto de índios arawak (em português, aruaques) antes da chegada de seus colonizadores, a Jamaica foi “descoberta” em 1494 por Cristóvão Colombo, e, primeiramente se chamava Xaymaca, nome indígena que significa “terra das primaveras” e, por extensão, “terra da madeira e das águas”.
Com a intensa política de exploração e extermínio do sistema colonial, os índios foram dizimados. Para suprir a carência de mão-de-obra, a ilha recebeu, em seu período de colonização espanhola, e, posteriormente, inglesa, uma grande quantidade de negros da África Ocidental, que, forçosamente, deixavam seu continente-mãe para a realização de atividades compulsórias no Novo Mundo.
Apesar de toda a revolta e humilhação, sempre mostraram sinais de sua sensibilidade, expressando na dança e/ou na música a esperança de melhores dias e a crença de que todo aquele sofrimento seria passageiro. Foram, exatamente, o seu bailado, o seu ritmo e o seu canto de resistência os primeiros alicerces da cultura jamaicana.
O reggae, até nossos dias, continua sendo um canto de descontentamento do povo, um grito de denúncia em favor da transformação social. Foi batizado em 1968 por Toots and the Maytals, com a música Do the Reggay. Segundo os próprios músicos (ou seja, o cantor e sua banda), a palavra teria vindo de raggedy, adjetivo muito utilizado no dia-a-dia jamaicano, que denota algo deteriorado, surrado ou muito usado.
Remetendo-se àquelas primordiais manifestações culturais africanas, percebe-se que o reggae é o resultado de toda uma evolução musical que começou com a forma folclórica mento, fundamentada nas canções dos negros escravizados. Este antepassado do reggae “[...] desenvolveu-se baseado no ritmo das músicas de trabalho que ajudavam os escravos a sobreviver através de longas horas de esforço estafante com a picareta” (CARDOSO, 1997, p.18).
Essa forma musical nativa proveniente de tanta labuta, juntamente com o rhythm & blues americano, motivaram o surgimento do ska, que, por sua vez, originou um outro ritmo, o rocksteady. A transição do rocksteady para o reggae acontece no momento em que esta marcação do baixo se torna ainda mais acentuada e a pulsação mais lenta, dando uma maior cadência ao novo ritmo. E “Nasce assim o movimento Reggae, colocando em primeiro plano o baixo e a bateria, deixando os outros instrumentos como acompanhamento secundário”. (CORONA, 2003).
O ritmo nasceu nos chamados “bairros de lata” da Jamaica, bairros da periferia edificados em barracões de zinco. É através desse dado que se depreende que, desde o seu aparecimento, o reggae sempre foi um som do gueto. Mas a magia do reggae, talvez, esteja no fato de conseguir mobilizar a população negra, mostrar a insatisfação para com a realidade, a discriminação racial sofrida e criar uma atmosfera de valorização das raízes negras, buscando reverter, assim, a opressão.
Com relação à construção e valorização da identidade, o reggae, em São Luís é, sem dúvida, o elemento de identificação da juventude negra, que assim o elegeu desde a década de 70. Uma primeira característica importante do movimento regueiro maranhense a ser citada é que, até hoje, a comunidade regueira de São Luís dança preferencialmente ao som dos reggaes jamaicanos produzidos nos anos 60 e 70 (o que não acontece mais, uma vez que, na Jamaica, a atual tendência é o dance hall, um reggae mais eletrônico) e ainda manifesta um menor interesse pelos reggaes brasileiros. “A preferência é exclusivamente pelo reggae original da Jamaica”. (SILVA, 1995, p.79)
Outra particularidade a ser destacada é a predileção por músicas mais vagarosas, que evocam uma atmosfera mais apaixonada; “[...] não existe entre os regueiros de São Luís uma ligação forte com Bob Marley. A preferência é por outros cantores considerados mais românticos, como John Holt, Gregory Isaacs, Erick Donaldson, entre outros”. (SILVA, 1995, p.94).
Uma das razões pelas quais, talvez, este ritmo tenha se fincado em solo maranhense é a grande população negra presente tanto neste estado como naquele país, fato que já leva a uma certa identificação étnica, e, por conta disto, a um gosto comum pelos ritmos de raízes africanas. Poderia ser citada aqui, também, alguma semelhança no meio social, na medida em que os dois povos vivem realidades de pobreza parecidas, e o reggae é, exatamente, um grito de protesto, uma forma de expressão dos menos favorecidos.
Outro possível motivo para a grande identificação do maranhense com o reggae é a semelhança do reggae roots (o executado nos salões de São Luís) com certas manifestações culturais maranhenses, como, por exemplo, o bumba-meu-boi. Esta proximidade musical é, aliás, claramente audível: a célula rítmica do reggae roots é compatível com a de alguns sotaques mais ralentados do bumba-meu-boi (como o sotaque da Baixada) e é, em função desta semelhança, que ambas as células podem ser construídas sob o compasso 2/4.
Percebe-se que a pulsação do reggae feita pelo contrabaixo elétrico e pelo bumbo da bateria é a mesma feita pelo pandeirão e pelo tambor-onça no bumba-meu-boi. O reggae também possui compatibilidade rítmica com uma outra manifestação da cultura maranhense, o bloco de ritmos; a marcação feita pelo pedal da bateria muito se aproxima da do contratempo, aquele longo tambor dos blocos tradicionais da cidade.
Há muitas versões para o primeiro encontro dos maranhenses com o ritmo jamaicano. A versão mais aceita é a de que, no começo dos anos 70, um apreciador de músicas caribenhas àquela época, Riba Macedo, teria tido acesso a alguns discos de reggae vindos de Belém (estes, por sua vez, contrabandeados da Guiana Francesa) e teria começado a levá-los a festas “regadas” aos sons do Caribe, festas promovidas por donos de radiolas, como “Carne Seca” (José de Ribamar Maurício Costa).
Cabe, neste momento, lembrar que o reggae não foi o primeiro ritmo das radiolas do Maranhão, que antes executavam outros ritmos caribenhos, como a salsa, o bolero e o merengue. Estes ritmos embalaram os freqüentadores dos salões de São Luís e do interior (principalmente da baixada maranhense) até meados da década de 70.
Os freqüentadores destas festas, mesmo não sabendo o nome daquele ritmo, aprovaram a sua cadência mais vagarosa e já buscavam seus pares no momento em que os reggaes eram executados. Dançavam-no de forma similar aos outros ritmos caribenhos, num intenso deslizar de corpos, com movimentos de muita sensualidade. Desta “interferência de passos” nasceu uma das particularidades do reggae maranhense, o dançar agarradinho, e, hoje, “[...] São Luís é o único ou um dos poucos lugares do mundo onde se dança reggae aos pares” (SILVA, 1995, p.25).
Assim, o reggae foi, aos poucos, inserindo-se e firmando-se no gosto do público maranhense, até que na década de 80/ começo da década de 90, consolidou-se como o principal ritmo da periferia de São Luís, que passou a ser chamada de Jamaica Brasileira ou Capital Brasileira do Reggae. Neste momento de grande aceitação da música de Jah, as radiolas já quase não tocavam outros ritmos; sua preferência passou a ser a execução de reggaes que, a partir de então, transformaram-se em verdadeiras “pedras preciosas”. E quão preciosas eram...
Os proprietários de radiolas pagavam quantias exorbitantes pela posse exclusiva de um LP. Esta disputa era tão acirrada, que chegavam a financiar viagens de algumas pessoas para a busca de raridades na Jamaica, Londres, Holanda e França. A mola mestra do movimento tornou-se a exclusividade; as radiolas possuidoras de reggaes raros e comoventes (que abalavam, agitavam e emocionavam) eram as eleitas pela massa regueira. O objetivo do regueiro ao ir a uma festa era ouvir os melôs (os reggaes) exclusivos de sua radiola e sentir a motivação, o delírio do discotecário ao executá-las. Esta
[...] capacidade de manter a exclusividade fonográfica garante a alguns proprietários de radiolas a permanecer em evidência junto à comunidade regueira, e, por sua vez, é a comunidade que nesse ranking elege os melhores, independente do tempo de existência da radiola ou do clube. (SILVA, 1995, p.53).
Atualmente, apesar de muitos reggaes já estarem disponíveis para download na Internet, as radiolas ainda buscam os LP’s originais, uma vez que “A essência do reggae maranhense é o chiado da bolachinha” (SILVA, M. V., 2003).
A exclusividade mantém-se nestes tempos de aumento constante do dólar não mais por meio de viagens internacionais, mas pela encomenda de músicas pelos proprietários das radiolas. Com isso, cantores jamaicanos que moram em São Luís, como Norris Colle e Bill Campbell ou mesmo cantores locais como Dub Brown, compõem suas músicas (às vezes até a gosto da radiola), vendem-nas e um contrato de exclusividade é cumprido; a música só poderá ser executada pela radiola que a encomendou até o lançamento do cd do cantor. Estas encomendas musicais são negociadas a preços astronômicos, e pode-se, certamente, inferir-se por meio deste fato que a posse de exclusividades ainda é a grande vedete do reggae.
As radiolas continuam sendo as grandes difusoras do reggae e o seu grande sustentáculo. Somente na capital, há mais de oitenta delas, entretanto se especula que em todo o Estado haja mais de quatrocentas. Esses sistemas colossais de som contam, em média, com 24 a 36 caixas por conjunto, que é chamado de paredão ou coluna. Cada radiola possui, aproximadamente, quatro paredões, quando não existe a divisão de radiolas; a Itamaraty, uma das principais radiolas da cidade, subdivide-se em Itamaraty 1, 2 e 3, ou seja, doze paredões de som! A subdivisão de uma radiola possibilita a participação em vários eventos em um só dia, e, principalmente, a obtenção de maior lucro.
O ritmo do reggae, em São Luís, é um bem cultural da população de baixa renda, que encontra ali, naqueles salões de festa um elo de identificação. Mas apesar de ser um verdadeiro sucesso entre a massa regueira, é visto, ainda, pelas classes de maior prestígio econômico, como um ritmo inferior.
Compreende-se, nesse sentido, que o reggae jamaicano é um produto cultural construído a partir de elementos africanos, em outras palavras, é uma re-elaboração, uma re-significação da cultura africana em terras americanas. O reggae no Maranhão, sem desmerecê-lo, é uma espécie de “café coado duas vezes”, visto que, ao chegar ao Estado, fez-se passar por uma terceira elaboração. Por conta disso, adquiriu contornos particularmente maranhenses, características específicas deste alegre povo que o recebeu e o adotou, tanto que hoje é um dos ritmos que traduz o povo e o modo de viver maranhense.

LÉXICO E CULTURA:
A LÍNGUA COMO DESVELAMENTO DO PATRIMÔNIO
SÓCIO-CULTURAL DE UMA COMUNIDADE
Apesar de o homem, no momento de seu nascimento, possuir uma determinada maneira de ser baseada na presença de caracteres físicos e mentais particulares, ele já encontra um mundo anteriormente organizado. Desse modo, ele também se forma a partir do que “já está aí”, a partir dos bens culturais que a ele se apresentam e que facilitam a sua adaptação no mundo, como a caça, a pesca, os utensílios criados para o armazenamento de alimentos, as instituições sociais, os sistemas de crença, os padrões de comportamento, a língua etc. Assim, ao mesmo tempo em que molda o mundo com suas novas idéias, tem seu espírito moldado pelas conceituações intelectuais de sua época, na medida em que “[...] nasce num mundo de significações e de valores postos em precedência”. (CRIPPA, 1975, p. 184).
O homem apresenta-se, desde o início, como cultivador. Não só de terra, dos rebanhos e das forças da natureza. Cultiva seus gestos, suas expressões, sua fisionomia, seus hábitos de habitar, de vestir-se e de alimentar-se. Cultiva a amizade, cultiva o espírito, cultiva as relações com os entes divinos [...] (CRIPPA, 1975, p.182)
A sua cultura reside, exatamente, nesse cultivar; porém o homem continuamente intervém no mundo para adaptá-lo às suas necessidades e, mesmo integrado a uma cultura, adaptado a certos padrões culturais, aquele seu “algo de individual” gera transformações, imprimindo, na cultura, as marcas do seu espírito inventivo, modificando-a. Logo, é nesse contato com a realidade que o homem cria e recria seus bens culturais e, mais ainda, significa-se e constrói-se com eles.
Sabe-se que o homem expõe suas idéias e seu modo de ver o mundo, principalmente, por meio das palavras. Assim, palavras são criadas porque o homem é um ser de novos pensamentos e palavras são também norteadoras, pois lhe informam sobre as coisas do mundo. Por ser uma das criações humanas, a língua é parte de sua cultura; por acumular simbolicamente e transmitir o que o homem já edificou em termos mentais e materiais (nomeando este conhecimento para que seja socializado), a língua é, também, o grande veículo das realizações humanas. “Instrumento social de comunicação, a língua existe intimamente ligada à cultura de um povo. É ao mesmo tempo elemento da cultura e instrumento dessa mesma cultura”. (CARDOSO, 1988, p.231).
Revela-se, nesse sentido, uma íntima relação entre língua e cultura, visto que a língua representa simbolicamente tudo aquilo “[...] que o homem criou na base das suas faculdades humanas” (CÂMARA JÚNIOR, 1972, p.266), ou seja, toda a sua cultura. E como cada grupo humano possui sua história e modo de viver particular, as línguas também são marcadas pelos traços destas atividades sócio-culturais específicas.
Tomando por base estas reflexões, a atenção volta-se a um aspecto da língua que muito se renova e enriquece – o léxico. O léxico é o cerne de uma língua, o conjunto de vocábulos ou expressões que a compõem; ele abriga todo o repertório conceitual, todas as unidades formadoras do sistema lingüístico e estas unidades, por sua vez, são criadas a partir das necessidades e interesses de uma comunidade em reportar-se a novos elementos.
A expansão do léxico provém da necessidade de um grupo em designar novos conceitos, fenômenos e objetos que passam a existir, frutos da criação e descobertas humanas – de sua necessidade lingüístico-expressiva. É por esta razão que o léxico é o domínio da língua mais sujeito a modificações; porque obedece a um processo constante e espontâneo de expansão, acompanhando e reajustando-se às sociedades em seus cursos de mudanças na História.
O léxico refere-se, assim, à feição do falar de uma comunidade, o seu modo de viver, porém o aspecto e a cor dessa nomenclatura dependerão do ambiente físico e/ou dos fatores sociais/culturais que modelam as atividades de seus indivíduos. Ou seja, “O léxico de uma língua forma-se na História de um povo” (FIORIN, 2001, p.115). Deste modo, as características e interesses particulares de uma região adormecem no próprio conjunto de expressões utilizado por seus falantes; o sistema lexical de um grupo “denuncia” toda a sua organização social. “O léxico completo de uma língua pode se considerar, na verdade, como o complexo inventário de todas as idéias, interesses e ocupações que açambarcam a atenção de uma comunidade.” (SAPIR, 1961, p.45).
Nesta perspectiva, analisar o léxico de uma comunidade é desvelar as suas práticas sociais em seu acervo de palavras; é compreender a história, as manifestações artísticas, as religiões, as atividades econômicas, os valores, etc. como sendo importantes elementos constitutivos de um grupo. É desvelar todo o seu patrimônio sócio-cultural; tudo aquilo que construiu, constrói e que deixará para a posteridade.
Insere-se, neste contexto, o “léxico maranhense” que é marcado por algumas expressões lingüísticas particulares, originadas da grande influência do reggae na realidade social ludovicense. Depreende-se disso que as estruturas sociais estão expostas nas estruturas lingüísticas e o movimento regueiro, sendo, já, uma expressão da cultura maranhense, imprimiu as suas lexias na fala daquele povo.
Contudo, estas alterações não descaracterizam o léxico de uma língua, uma vez que possui uma espécie de agregado de lexias sempre compartilhadas por seus falantes. Este agregado lexical comum,
[...] que caracteriza uma língua é tão resistente quanto a gramática porque as noções que ele expressa, de um lado, não são afetadas por mudanças econômicas e sociais, e, de outro, porque são de uso geral e coloquial. Esse fundo comum é o sustentáculo da estrutura léxica de uma língua. (FIORIN, 2001, p.113).
As lexias criadas pelo movimento regueiro ludovicense retratam toda a sua ambiência física e social: os equipamentos de som que dão vida às festas (radiolas), os grandes nomes do reggae (magnatas), as músicas românticas que são executadas (pedras manhosas) e até mesmo algumas situações desinteressantes que possam vir a acontecer, como a recusa de um convite para dançar (passar um ferro).
Diante do exposto, conclui-se que estas variedades lexicais presentes na fala maranhense, em momento algum, representam a ruína ou o desmoronamento da Língua Portuguesa (segundo a visão de alguns preconceituosos), mas espelham a história, a dinamismo cultural presente no país e a dinamicidade da língua portuguesa falada no Brasil. É preciso atentar-se para o fato de que a expansão lexical é natural e está fortemente marcada por condicionantes sócio-culturais.

ANÁLISE DO LÉXICO: O COROLÁRIO DA PEDRADA
Sabendo-se que as palavras designam os fenômenos do mundo, faz-se essencial a investigação do campo léxico deste movimento para que, de modo igual, observe-se todos os componentes de natureza sócio-histórico-cultural que determinaram a configuração deste vocabulário, tão repleto de particularidades. Segue, pois, a análise semântica de seus principais itens lexicais:

Pedra, pedra de responsa, pedrada, varada, pancada e tijolada. (s.f.)
As unidades lexicais pedra, pedra de responsa, pedrada, varada, pancada e tijolada possuem significações equivalentes no movimento regueiro e nomeiam “um reggae muito bom, bonito ou envolvente” (ALiMA..., 2003), uma acepção bem peculiar e interessante.
Provavelmente, a escolha de pedra se deva ao fato de que seu referente, em toda a história, sempre possuiu um importante valor simbólico para a humanidade. Conforme demonstra Cunha (1982, p.590), esta lexia provém do latim petra –ae, derivada do grego pétra e refere-se à “matéria mineral dura e sólida, da natureza das rochas”. (FERREIRA, 1999, p.1525).
Os gregos tiveram, no princípio, pedras como deuses. A representação do sagrado pelas imagens atuais evoluiu desse culto litográfico, como atesta (CASCUDO, [19..?], p.694) “a pedra e depois a pilastra foram as representações iniciais”. Algum tempo depois, no Cristianismo, Pedro (substantivo próprio derivado de pedra), príncipe dos apóstolos foi considerado a base da igreja católica, o seu sustentáculo, pois, sob a sua figura, foram assentados os alicerces da igreja. “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja [...]. Mt, 16, 18”. (ALMEIDA, 1993, p.23).
Pela associação com a solidez e resistência da pedra é que, segundo um dos entrevistados, José Eleonildo Soares, o “Pinto da Itamaraty”, uma música muito bonita na Jamaica é denominada stone, por ser uma música “de peso”, de força, de resistência; o Maranhão teria herdado espontaneamente esta lexia, traduzindo-a, assim, para o português (pedra).
Vale aqui ressaltar rapidamente que pedra já se tornou também um adjetivo, sinalizando algo superior, magnífico ou maravilhoso. Como exemplos, têm-se: aquela garota é pedra, esta música é muito pedra.
Quanto à locução adjetiva ou o qualificador “de responsa”, é a abreviação ou a redução do termo “de responsabilidade”, ou seja, um reggae de grande importância, digno de respeito por sua beleza.
As lexias pancada, tijolada, varada e pedrada, por sua vez, seguiram a mesma motivação semântica da palavra lambada. Morfologicamente, lambada é uma forma híbrida, constituída, como afirma Castro (2001, p.263), de lamba (do banto / kwa[1]) + ada (sufixo nominal português que indica ação), que significa “golpe de chicote, golpe dado com lamba (chicote, tala de couro)”.
Ferreira (1999, p.181) apresenta acepção similar, a de “golpe de chicote, tabica ou rebenque; lapada, lamborada”, mas para ele, etimologicamente, esta lexia é uma variedade de lombada, com assimilação. Pode-se dizer, analogicamente, que, se lambada é um golpe, um açoite físico; uma pedrada é um reggae de impacto que bate fortemente na alma (como igualmente as demais lexias) ou que abala o espírito por sua qualidade.

Melô (s.m.)
Investigada sob a perspectiva do reggae são-luisense, a lexia melô é muito utilizada em razão do não-conhecimento da língua inglesa por parte dos regueiros maranhenses. Porém, para eles, isso não se constitui um problema, na medida em que alegam que o mais importante é perceber e envolver-se com a melodia e pulsação rítmica do reggae. O regueiro “Não tem o conhecimento da linguagem, mas tem um conhecimento maior que é o feeling da música, ele sente a vibração da pancada [...]” (SANTOS, 2003).
Como, geralmente, as letras dos reggaes roots são compostas em inglês, o regueiro, para facilitar a identificação da música, bem como o seu pedido nas rádios, chama-a de melô + uma locução adjetiva determinada pela comunidade regueira por algum motivo particular.
Ilustrando este processo de denominação com exemplos, a música Sweet P. do grupo Fabulous Five é chamada, pelos regueiros maranhenses, de “melô da chuva”. Esta denominação não tem qualquer tipo de relação com sua letra: na ocasião em que foi lançada em São Luís pelo dj Carlinhos Tijolada no clube Barraca de Pau na Cidade Operária, chovia torrencialmente e, por conta deste fenômeno da natureza, a música foi designada desta forma.
A música White Witch da banda Andrea True Conection é conhecida na cidade por “melô do caranguejo”, contudo, o motivo, neste caso, foi a adaptação fonética (adaptação que, aliás, já inspira um interesse para pesquisas posteriores). Em seu refrão, há trecho em que é perguntado What’s gonna get you? (expressão idiomática inglesa que significa O que te chamará a atenção?, O que irá te prender?), o regueiro maranhense, ao escutar este refrão, acomodou a expressão ao sistema fonológico de sua língua materna, o Português, passando a cantar “olha o caranguejo”. E, assim, nasceu o “melô do caranguejo”.
O item lexical melô foi formado a partir do processo de redução de melodia, que designa uma “sucessão rítmica, ascendente ou descendente, de sons simples, a intervalos diferentes, e que encerram um certo sentido musical” (FERREIRA, 1999, p. 1313). A motivação desta lexia no reggae origina-se, especificamente, de uma certa ligação entre este sentido de composição musical com o ritmo do reggae. E, é em razão desta associação de significados, que melô indica, nos dias atuais, “os reggaes executados nas festas e programas de rádio”.

Radiola (s.f.)
A lexia radiola, datada do século XX, designa a junção de dois recentes e grandes inventos do campo da comunicação. Trata-se de um tipo de redução, segundo CUNHA (1982, p.660), de radi (o) + (vitr) ola. Na acepção de Ferreira (1999, p.1698), “é um aparelho em que se conjugam o rádio e a vitrola; radiovitrola”.
A lexia foi incorporada ao falar maranhense antes mesmo da chegada do reggae a São Luís, visto que as músicas eram executadas nas festas a partir da reprodução direta dos vinis pelos toca-discos, também chamados de vitrolas ou eletrolas, e emitidas pelas caixas de som amplificadas (ou ligadas a amplificadores).
Assim, atualmente no universo regueiro, radiola, “é o conjunto de equipamentos de som das festas de reggae” (ALiMA..., 2003) (mesa do dj + conjunto das caixas de som), pela relação quase indissociável que há entre os sistemas de som e o ritmo, desde a sua explosão nos anos 80 em São Luís. No tocante à qualidade, uma radiola não é analisada por seu tamanho ou quantidade de caixas de som, mas pela sua qualidade sonora (o que implica, de certa forma, uma boa emissão da marcação do contrabaixo) e pela seqüência de músicas executadas, que precisa agradar aos regueiros.

Radioleiro
A lexia radioleiro, ainda não dicionarizada, é formada por radi (o) + ol (a) + o sufixo nominal -eiro, que indica, na Língua Portuguesa, noções como a do indivíduo que pratica uma ação, como pistoleiro, aquele que pratica uma tarefa, como mensageiro ou aquele que exerce uma profissão, como marceneiro, sendo esta última a mais apropriada para o caso, pois a lexia é entendida, no contexto do reggae, como o substantivo que denomina “o proprietário de uma radiola”.

Paredão (s.m.)
Prosseguindo a análise das lexias, há um outro termo muito particular da comunidade regueira – paredão. Datado do século XVII, conforme Cunha (1982, p.582), é constituído por parede (do lat. parete) + ão (sufixo aumentativo nominal português).
Ferreira (1999, p.1500) e Houaiss (2001, p.2133), respectivamente, apresentam as seguintes acepções: “grande parede; muro alto e muito espesso, muralha e muro muito elevado e consistente.”
Relacionando as acepções dos dicionários à colhida em entrevistas, observa-se que a lexia foi criada por um processo de associação semântica, já que as caixas de som dos salões de festa realmente ganham a forma de muralhas colossais. Deste modo, paredão, nos salões da capital maranhense é “o conjunto das caixas de som das festas de reggae”. (ALiMA..., 2003).

Seqüência (s.f.)
Percorrendo este caminho de significações tão características do vocabulário regueiro ludovicense, chega-se à lexia seqüência, conceituada nos dicionários, em geral, de maneira semelhante, apresentando acepções muito parecidas com a de encadeamento, sucessão de elementos.
No falar das pessoas que fazem parte deste movimento cultural, quando uma série de reggaes é executada somente por uma determinada radiola, chama-se seqüência exclusiva. Cada radiola em São Luís possui sua seqüência particular, com um qualificador específico para chamar a atenção dos regueiros; a Estrela do Som possui a seqüência demolidora, a Itamaraty, a seqüência estilosa, a Rebel Lion, a seqüência indomável, a FM Natty Nayfson, a seqüência arrasadora.

Bolachinha (s.f.) e Bolachão (s.m.)
Tomando por referência HOUAISS (2001, p.480), que apresenta a acepção de bolacha como sendo “biscoito chato de farinha de trigo ou maisena, com pouco fermento, de forma retangular, de disco etc [...]”, depreende-se que, neste caso, diante da semelhança da forma arredondada do biscoito com os discos de vinil, surgiram, no vocabulário do reggae de São Luís, as formas bolachinha e bolachão, que nomeiam, respectivamente, “disco fonográfico compacto de vinil, com uma ou duas composições em cada lado” e “disco fonográfico grande de vinil, long play”. Faz-se importante registrar que a bolachinha e o bolachão, mesmo com o advento das fitas cassete, do cd e do md, ainda são muito utilizados nas festas.

Caber (v.i.)[2]
A lexia caber provem do latim capere e data do século XIII, tendo como acepções “poder ser contido, poder realizar-se, exprimir-se, suceder, dentro de um certo tempo” (FERREIRA, 1999, p.350). Esta primeira acepção ilustra o emprego da lexia no ambiente regueiro, que, por uma espécie de ajustamento semântico, adentrou aquele espaço para dar forma a uma expressão que denota o interesse do regueiro por uma garota.
Acompanhada da locução adverbial locativa na minha pontuação, esta expressão é utilizada pelo regueiro quando este percebe e quer demonstrar que uma determinada garota é possuidora de todos os atributos que procura. Como um sapato que se ajusta perfeitamente ao pé de uma pessoa, precisamente compatível à medida que calça, assim é igualmente a regueira que desperta a sua atenção.

Levar (v.t.) e Passar (v.t.)[3]
A exemplo de caber, outros verbos são observados no falar regueiro com significação bem característica – levar e passar.
O verbo levar, seguido do complemento ferro (OD), designa figuradamente e em sentido popular, “ser malsucedido em (alguma coisa); levar chumbo” (FERREIRA, 1999, p. 895), apresentando Houaiss (2001, p.1749) definição semântica idêntica. É provável que ferro esteja presente nesta expressão por sua rijeza, dureza e resistência, simbolizando, metaforicamente, a dificuldade para enfrentar os insucessos e decepções da vida.
Pela analogia semântica, por também representar um desgosto, um desapontamento, esta expressão foi incorporada ao contexto regueiro para denominar, da mesma forma, uma situação decepcionante, “o momento em que o regueiro tem seu convite para dançar recusado”. Em geral, é o homem quem leva ferro, pois o reggae é ainda um espaço machista; as mulheres ficam aguardando um convite para dançar aos pares.
Quando a regueira rejeita o convite, ela passa um ferro, ou seja, “aplica” uma resposta negativa ao pretendente. Esta lexia foi motivada pelo ajuste semântico a uma das acepções de passar: “transferir, transmitir” (LAROUSSE, 1993, p.265).

Carimbar (v.t.d.)[4]
Este exemplo final busca comentar o emprego e a significação de carimbar, forma verbal nomeante de um ato típico do reggae. O registro etimológico do termo data do ano de 1844, como comprovam as pesquisas de Cunha (1982, p.156).
Castro (2001, p.203) define a lexia como “colocar carimbo”. Carimbo, por sua vez, tem sua origem no banto, sugerindo “selo, sinete, sinal público com que se autenticam documentos” (CASTRO, 2001, p.203).
Ao que tudo indica, esta palavra chegou ao movimento regueiro motivada por este sentido de deixar uma marca, um traço, e, por meio da semelhança de significado com este conceito anterior, carimbar (acompanhada do complemento verbal a música) simboliza, na linguagem regueira, “o ato de colocar vinheta ou prefixo num reggae com o nome de uma dada radiola”. (ALiMA..., 2003). Esse ato tem por objetivo marcar a exclusividade de uma música por uma radiola (evitando, assim, o compartilhamento de uma “raridade”), como também facilitar a identificação das radiolas nas festas.

CONCLUSÃO
Por fim, pode-se chegar à conclusão de que essas lexias designativas do ambiente regueiro partem, em sua maioria, de formas lingüísticas já existentes, entretanto, possuem um significado contextual especial, fruto da ressemantização destas unidades, uma vez que passaram a nomear novos referentes que dão o feitio a uma realidade particular – o reggae ludovicense. O regueiro, na verdade, “[...] recorreu a lexias já conhecidas e de uso comum na língua e lhe atribuiu certos traços específicos de maneira que pudessem expressar o que desejava comunicar.” (ISQUERDO, 2001, p.99).
Ao se encerrar esta breve pesquisa, tem-se uma convicção cada vez maior de que a linguagem de um grupo, mais especificamente, o seu léxico, adapta-se aos moldes das práticas sociais que o mesmo desempenha. O léxico do reggae ludovicense formou-se / forma-se com a construção e o desenvolvimento do próprio movimento, abarcando em si todos os seus fenômenos físicos e sociais e, ao mesmo tempo, traduzindo em palavras todo aquele contexto.
Por fim, espera-se ainda que esta pesquisa venha, além de proporcionar uma contribuição substancial e efetiva para o entendimento da língua portuguesa no Brasil como uma unidade sistêmica que abrange várias normas em uso, auxiliar os autores de livros didáticos na confecção de materiais que retratem o falar maranhense, já que, muitas vezes, adentram a sala de aula textos de vocabulário alienígena que desinteressam os alunos.


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Um comentário:

Anônimo disse...

Muito util essa pesquisa, para diversos entendimentos do mundo reggae...abraço Jean Roots!