Por:Carlos Benedito Rodrigues da Silva
O reggae surgiu na Jamaica, em meados dos anos sessenta,
como conseqüência de uma evolução rítmica e musical, desde as
tradições negro-africanas, passando pelo mento, pelo rock-steady,
rhythm and blues, além das influências marcantes do
rastafarianismo.
Desde o seu início, e ao longo dos anos setenta do século
XX, o reggae concentrou todas as expressões sociais, culturais e
políticas da Jamaica, por meio de compositores e cantores, adeptos
do rastafarianismo, que se tornaram profetas, críticos sociais ou
líderes espirituais, atribuindo-lhe uma característica de movimento
messiânico.
Inspirado em interpretações bíblicas, o rastafarianismo
constituiu-se numa alternativa de construção da nacionalidade para
milhares de jovens jamaicanos, que viviam no desemprego e na
marginalidade, especialmente a partir da industrialização da Jamaica,
nos idos de 1950, por isso tornou-se um amplo movimento popular
na Jamaica, refletindo uma identidade cultural de oprimidos que
adotavam o reggae como o símbolo da expressão de suas angústias.
Embora não professem um credo monolítico, os rastas
acreditam que Ras Tafari é o “Deus Vivo” e que a salvação do
homem negro passa pelo retorno à África. O rastafarianismo se
tornou, portanto, um dos elementos fundamentais das mensagens
político-filosóficas do reggae, impulsionado pelas pregações, entre
outros, de Marcus Garvey, um dos principais articuladores do Pan-
Africanismo.
Os sons do Atlântico negro
Não existe um significado específico para a palavra reggae.
Alguns a consideram originária das misturas de línguas afrocaribenha
e inglesa, presentes na Jamaica, significando “raiva”, ou
“desigualdade”, porém não se tem nenhuma conclusão definitiva
sobre essa ligação. Essa palavra apareceu pela primeira vez em
um disco do grupo Toots and Maytals, donominado “Do The
Reggay”, em 1967. O próprio Toots Hibbert, vocalista do grupo,
definiu-a como “uma coisa que vem do povo dos guetos”, a
expressão teria se derivado de “streggae”, palavra caribenha usada
para designar prostituta. Talvez por isso, Toots tenha definido o
reggae, como algo que identifica o povo sofrido dos guetos, coisa
que se usa como comida, uma expressão para designar pessoas
simples, sofridas e que não tem o que querem.
A expressão máxima do reggae jamaicano no mundo está
em Robert Nesta Marley. Juntamente com a banda The Wailers,
Bob Marley foi o responsável pela explosão do reggae para além
das fronteiras jamaicanas. Secundado por nomes não menos
famosos hoje, como Jimmy Cliff e Peter Tosh, o sucesso
internacional dos Wailers, serviu para abrir as portas para vários
cantores e compositores jamaicanos, que começaram a excursionar
e editar seus discos fora do país.
Com um acentuado caráter de contestação política, marcando
uma revolução na música negra em todo o mundo, o reggae está
em permanente evolução, saindo em busca de novos ritmos,
originando novas tendências e conquistando novos espaços. Sem
deixar, porém, de beber sua essência na fonte básica que o originou,
isto é, os guetos do Terceiro Mundo.
Os ecos do grito jamaicano ressoam no Maranhão
É possível que, resguardando as devidas proporções, as
mesmas bases culturais que impulsionaram o surgimento do reggae
na Jamaica tenham contribuído para a explosão do ritmo jamaicano
entre as populações negras e pobres das favelas e palafitas de São
Luís do Maranhão, em meados dos anos setenta.
Embora seja difícil precisar exatamente quais os caminhos
percorridos pelo reggae até cair no gosto da população maranhense,
várias explicações são apresentadas para justificar essa forte
identificação, sendo que a maioria delas apresentam certo grau de
veracidade, algumas inclusive, de caráter geográfico.
Nessa região, considerada o “Portal da Amazônia”, que
envolve os Estados do Pará e Maranhão, sempre houve uma
predominância musical de ritmos caribenhos, como merengue,
carimbó, bolero, entre outros, nas festas populares1.
Algumas pessoas, como o comunicador Ademar Danilo2,
atribuem ainda o gosto pelo reggae a uma possível identificação
étnico-racial entre jamaicanos e maranhenses, ou seja, tanto na
Jamaica como em São Luís existe uma população
predominantemente negra com algumas características culturais
semelhantes, herdadas dos africanos escravizados. Isto revela que
raízes culturais africanas teriam sido transplantadas para as duas
regiões pelo processo de escravização e permanecido ali com
algumas ressignifições3.
Moradores de áreas rurais do Maranhão, especialmente da
chamada Baixada Maranhense, afirmam que sintonizam emissoras
do Caribe em algumas horas da madrugada e, que por isso, têm
uma familiaridade com os ritmos, que são também tocados nas
festas dos povoados negros do interior do Estado.
Na verdade, essa identificação, ainda que aparentemente
inconsciente e imprecisa de se definir, é resultante das raízes
culturais africanas, transportados para regiões diversificadas das
Américas e do Caribe, através do Atlântico Negro. Embora
permaneçam “invisíveis” por muito tempo, acabam florescendo em
situações específicas na diáspora, acionadas pela memória coletiva
a partir de estímulos diversos.
Uma aproximação cultural pode ser encontrada ainda, nas
variações rítmicas do bumba–meu-boi, chamadas de “sotaque”. O
reconhecimento de uma batida semelhante entre o reggae e o bumba
é o que permite a circulação dos regueiros entre os salões de reggae
Os sons do Atlântico negro e os terreiros de apresentação das “brincadeiras” da cultura regional no período junino, como afirma Humberto, cantador do bumbameu boi do Maracanã.
A gente sente o peso da trupiada do boi, ele se assemelha ao
peso da pancada do reggae. Foi isso que chamou a atenção,
foi essa pancada semelhante, foi isso que chamou a atenção
do pessoal, não é outra coisa não.
Várias vozes e narrativas tecem os discursos, incitando o
imaginário popular a respeito da inserção do reggae no espaço
maranhense. Insistindo no relato de alguns depoimentos, podemos
salientar as declarações de Joãozinho Ribeiro, músico e atual
secretário estadual de cultura do Maranhão. Segundo ele, o reggae
teve que superar muitos preconceitos para ser aceito como uma
das maiores manifestações dentro da cultura maranhense.
Morei mais da metade da minha vida na zona do baixo
meretrício e ali era comum esses navios que vinham das
Guianas (...) os marinheiros infestavam a zona. Era
comum eles aportarem todo mês, geralmente eles
pagavam as prostitutas com discos. Inclusive, o primeiro
disco de reggae que escutei foi na zona. Não sei a origem,
mas escutei lá, entre as décadas de 60 e 70 e depois
fomos vendo o reggae se expandindo nas festas da
periferia e a periferia sendo muito mal tratada. Agora
vemos o reggae conseguindo uma grande identificação
na cidade; isso superou a barreira do preconceito pra
depois entrar no mercado. A partir que se torna
mercadoria, aí quebra os preconceitos. A caminhada do
reggae foi popular, agora a gente pode até ver com outros
olhos, mas a origem foi de participação, foi suburbana,
que veio de baixo. Hoje, infelizmente, o reggae se tornou
um instrumento de exploração do próprio negro, mas isso
é a maneira como o reggae está sendo manipulado e assimilado por poucas pessoas que estão ganhando muito dinheiro.
A zona do baixo meretrício é uma região localizada no Centro
Histórico de São Luis, em cujos bares e cabarés ouve-se
diariamente o ritmo jamaicano entremeado de boleros e merengues,
o que nos remete a situações semelhantes atribuídas ao reggae
desde as suas origens na Jamaica.
Curiosamente, Joãozinho Ribeiro revela que um dos caminhos
de divulgação do reggae em São Luís foi pela zona do baixo
meretrício possibilitando, entre outras coisas, que se faça alguns
cruzamentos com a definição atribuída ao cantor Toot Hiberts, para
quem a expressão reggae, está relacionada “ao povo sofrido dos
guetos, pessoas simples, que sofrem e que não tem o que querem”
Entre outras coisas, é possível identificar neste ponto uma
das vias fortes de discriminação contra o reggae em São Luís,
qual seja, a sua identificação como uma música de negros
marginalizados, despossuídos, que povoam os guetos e palafitas da
Jamaica ao Maranhão e, ainda, com prostitutas, “mulheres vulgares”
que sofrem a violência diária de comercializarem o corpo por não
ter o que querem, nem o que precisam para assegurar respeito e
dignidade numa sociedade de opressão.
Podemos ainda salientar que a construção do reggae, em
certo sentido, assentada em uma semântica pejorativa, pode ser
relacionada com a moral burguesa, branca e cristã, de vigilância e
punição às exibições do corpo como instrumento do prazer, visto
que no reggae o corpo é concebido, fundamentalmente, pela
sensualidade que enseja.
O ritmo do reggae em São Luís, com sua forma de dançar
agarradinho reflete determinada sensualidade inscrita culturalmente
em corpos, manifestando-se no lazer e no trabalho, como uma
atitude de rebeldia, denunciando a exclusão que a escravidão impõe
e os processos da modernidade sustentam. Conforme Martin-
Barbero (1997:240)
Através de uma cadência quase hipnótica, o negro enfrenta o
trabalho extenuante e, envolvidos num ritmo frenético, o
cansaço e o esforço doem menos. É uma embriaguez sem álcool,
embora também ‘carregada’ oniricamente. E não se trata de
reduzir o sentido da dança ao do trabalho, e sim de descobrir
que a indecência do gesto negro não vem somente de sua
atrevida relação com o sexo, mas também, de sua evocação do
processo de trabalho no próprio coração da dança: no ritmo. E
é a dialética dessa dupla indecência o que vai de fato
escandalizar a ‘sociedade’ (...).
O consumo da cultura do negro como espetáculo midiático,
não é suficiente para atribuir-lhe qualificação social. Se por um
lado, possibilita visibilidade, ao mesmo tempo, reforça os elementos
de manutenção das desigualdades.
Por sua vez, a existência de várias versões explicativas indica
que é muito difícil precisar qual o caminho de introdução de
determinados elementos culturais em um novo contexto, como é o
caso do reggae jamaicano em São Luís.
Logo, todos os caminhos, a princípio, são legítimos, inclusive
a zona do baixo meretrício, onde o reggae é um dos atrativos para
os boêmios freqüentadores das casas e bares da região.
Essas afirmações, precipitadas, duvidosas ou legítimas, são
contribuições importantes, tanto para mostrar que um dos fatores
de aceitação do reggae pela população da ilha de São Luís foi a
sua relação com os ritmos caribenhos, como para nos dar pistas
sobre as possibilidades de existência de raízes culturais semelhantes
envolvendo povos das duas regiões.
Produzido originalmente em um idioma diferente, o reggae
se instalou na ilha e se espalhou por alguns outros municípios do
estado, criando uma nova linguagem como canal de comunicação
e identificação, concentrando-se com algumas características
marcantes, principalmente nos locais habitados pela população negra
de baixa renda da periferia, que o adotou como uma das mais
importantes opções de lazer.
Nessas áreas, é possível encontrar diariamente crianças
dançando reggae nas ruas ao som dos programas de rádio. No
universo regueiro de São Luís não se toca reggae nacional e na
falta de entendimento das letras, as músicas são apelidadas de melô.
Os próprios Dj’s, já apresentam as músicas com o nome da melô
conhecida.5
Contrariando os movimentos midiáticos, que “aquecem” ou
“esfriam” determinados ritmos de acordo com os interesses das
gravadoras, paradoxalmente, o reggae que não trilha por esse
mesmo caminho, adquiriu uma posição destacada no contexto das
programações culturais de São Luís.
De elemento identificador de negros marginalizados,
habitantes da periferia e prostitutas do “baixo meretrício”, ele passa
a ter uma aceitação como mercadoria de consumo, possibilitando
ganhos econômicos e prestígio para quem o manipula.
Um fator a ser ressaltado é que a exploração do reggae a
que se refere o compositor Joãozinho Ribeiro se dá não tanto pelas
elites, mas principalmente pelos proprietários de clubes e radiolas,
que concebem os eventos apenas como fonte de lucro, sem revelar
nenhuma outra preocupação de caráter sócio-coletivo que possa
beneficiar a chamada “massa regueira”, dinamizadora dos eventos.
Ainda que alguns preconceitos sejam quebrados, mesmo que
o ritmo esteja inserido em jingles e propagandas comerciais
veiculados nas emissoras de TV, permanece no plano social a
relação direta reggae/marginalidade. No próprio espaço das festas,
constata-se a exigência, pelos organizadores, de uma vigilância
acirrada sobre os regueiros, tanto por parte da polícia, como pelos
grupos de segurança, contratados especialmente para os eventos.
Mesmo que tenha se expandido atualmente para outros
setores considerados “mais higienizados” da cidade, o reggae ainda
não é aceito por esses grupos como um símbolo da cultura
maranhense, pois isso remeteria São Luís a uma Jamaica negra e
pobre, distanciando-se cada vez mais do título de Atenas Brasileira,
ostentado com tanto orgulho pelos intelectuais maranhenses desde
o século XIX, cujos descendentes, de sangue ou de orientação
Os sons do Atlântico negro ideológica branca, deixam transparecer uma atitude de repúdio à assimilação do reggae por amplos segmentos da população maranhense e, principalmente, à denominação Jamaica Brasileira atribuída a São Luís pelos DJ’s.
A presença do reggae estaria provocando uma atrocidade
na cultura maranhense, especialmente para aqueles que assimilaram
a ideologia de europeização, construída na sociedade brasileira após
a abolição da escravatura, quando o trabalho escravo foi substituído
pelo assalariado.
Se nos períodos imediatamente após a abolição da
escravatura, a presença do negro era vista como sinônimo de atraso,
de animalidade, e o ex-escravo era definido como incapacitado
para o desenvolvimento econômico e cultural da nação, a
identificação de São Luís com a Jamaica hoje, significa para alguns,
remetê-la a um passado de inferioridade e distanciamento em
relação à europeização pretendida e nega, assim, a importância da
presença da população negra, em grande parte responsável pela
construção da sociedade brasileira.
Deste modo, reivindica-se o título, “mais nobre”, de Atenas
Brasileira, como uma maneira de reforçar o desejo de ser menos
negro em sua cultura, menos africano, ou menos jamaicano, pois o
sonho de europeização precisa ser construído sob a concepção
dominante de desqualificação da herança cultural africana, que teima
em permanecer com fortes raízes no cotidiano religioso, do trabalho
e do lazer de amplos segmentos da população maranhense.
São essas raízes que desafiam as imposições das “elites
atenienses” de São Luís e trazem o reggae como uma força
dinamizadora de identidades que, apesar de ainda não serem
suficientes para transformar a cidade em uma nova Jamaica,
contribuem para o estabelecimento de novos referenciais de
identificação para segmentos populacionais que, desconhecendo
uma ou outra realidade, constroem seus próprios caminhos a partir
das pluralizações culturais que vivenciam.
O reggae é um dos elementos desse processo e ganha força
na concepção popular. Portanto, “o belo e edificante epíteto” de
Atenas Brasileira já não faz sentido, a não ser para a satisfação de
determinados segmentos sociais que se outorgam guardiões das
tradições como retrato de um passado escravista, este sim atroz,
pois violentador da dignidade humana.
Durante muitos anos, a propagação do reggae em São Luís
esteve ligada muito mais a um comércio alternativo de gravação
de fitas e ao aluguel de radiolas do que à industria cultural. A
divulgação se fez com a promoção de festas e programas de rádio.
As fitas eram gravadas de discos importados da Jamaica
que somente alguns discotecários tinham acesso, pois desde meados
dos anos oitenta, quando se deu a grande projeção do reggae na
ilha, muitos desses discos já estavam fora de catálogo na própria
Jamaica, chegando a São Luís como raridades.
Além do comércio de fitas, a programação de rádio teve um
papel muito importante nesse processo, pois possibilitou que o ritmo
alcançasse espaços cada vez mais distantes, tanto entre os diversos
segmentos da população da capital, como nos municípios e povoados
rurais do interior do estado.
Os programas, embora mantidos pelas emissoras, eram feitos
com material exclusivo dos DJs, porque as próprias emissoras não
tinham os discos de reggae.
Uma das diferenças marcantes em relação à Jamaica é que
o reggae em São Luís é dançado aos pares. A dança adquiriu essa
característica misturando passos do forró e do merengue,
predominantes na região.
Embora a predominância seja dançar aos pares, algumas
pessoas preferem dançar sozinhas próximas às caixas de som. Há
também as coreografias coletivas, com grupos de três ou cinco
pessoas exibindo passos coordenados.
As pessoas gostavam porque era música lenta. Na época, a
gente não sabia separar o que era reggae, o que era música
lenta. A gente dançava sem fazer definição. (Riba Macedo,
discotecário:
A dinamização do ritmo jamaicano no Maranhão coincide
com a explosão dos hits da “Discoteque” na região Sudeste do
País. Tanto que os primeiros sons de reggae em São Luís foram
pela música de Jimmy Clyff. Seus discos estavam chegando ao
Brasil no embalo desse novo som e já podiam ser comprados nas
lojas locais.
Muitas pessoas afirmam que antes de se conhecer a palavra
reggae no Maranhão, esse ritmo era identificado como “discoteca
lenta”, “balanço”, ou “Jimi Clife”.
(...) antes de se conhecer a palavra reggae aqui, as pessoas
chamavam balanço, ‘ô que balanço bonito é o do Jimmy Clyff’,
então chamava Jimi Clife e tal (...) (Chico Pinheiro, maestro:
1998).
Enquanto nas regiões Sul e Sudeste a preferência musical
para as festas da juventude recaía sobre os ritmos mais acelerados,
como o rock, a discoteca ou o funk, que preferencialmente se
dança solto, nas regiões Norte e Nordeste os ritmos predominantes
eram: forró, merengue, baião, bolero etc., ritmos que se dançam
aos pares, ou “agarradinho” que é uma expressão nordestina para
as danças de salão.
A música estrangeira não tinha muita penetração, com
exceção do merengue que vinha da Guiana e era aceito porque se
assemelhava aos passos do forró nordestino.
A música internacional que se dançava aqui era o merengue,
porque na época tinham os cantores brasileiros. A gente
gostava muito de Lindomar Castilho, Carlos Alexandre, Altemar
Dutra, Evaldo Braga. Era aquele estilo que a gente dançava,
mas o merengue também estava no auge. O rei do merengue
aqui era considerado Luiz Calaf.
As músicas de Jimmy Cliff eram muito solicitadas nas festas
porque tinham um balanço diferente, que agradava ao público.
Depois chegou às lojas um LP de Johnny Nash, ‘I Can See
Clearly Now’, regravado no Brasil em l971. Essa música, junto
com outras de Jimmy Cliff, ‘You Can Get It If You Really Want’
e ‘I Love I Need’, faziam muito sucesso nas festas no início
dos anos setenta. (Riba Macedo: julho/98).
As radiolas tiveram também uma grande importância no
processo de divulgação do reggae em São Luís. Elas são sistemas
montados com uma aparelhagem sofisticada, contendo várias caixas
de som formando paredões nos clubes, possuindo semelhanças com
os “sound systems” jamaicanos que popularizaram o Ska e depois
o Rock Steady como alternativa ao controle excessivo exercido
pelo governo à rádio jamaicana.
Operadas por discotecários que nem sempre são os seus
proprietários, as radiolas são contratadas para animar festas em
vários pontos da cidade, da mesma forma que os sound systems
jamaicanos. As radiolas maranhenses não nasceram com o reggae,
elas já existiam anteriormente, promovendo festas com forró,
lambada, merengue, entre outros ritmos, em festejos de santo na
capital ou no interior do estado6.
A partir do início dos anos oitenta houve uma proliferação
desses equipamentos. Voltados quase exclusivamente para a festa
de reggae, eles contribuíram para que o ritmo se espalhasse
praticamente por todos os bairros de São Luís, oferecendo lazer
para uma grande faixa da população de baixa renda que não tinha
condições de adquirir os discos.
Curiosamente, como havia uma competição intensa entre os
discotecários ambulantes na Jamaica que chegavam a raspar a
etiqueta ou o selo dos discos novos para dificultar a aquisição pelos
concorrentes, em São Luís essa prática também foi adotada pelos
produtores das festas de reggae.
A disputa pela exclusividade de um disco sempre foi muito
acirrada. Alguns proprietários de radiolas chegavam a comprar todos
os exemplares de um mesmo disco e raspar os selos para que
outros não pudessem identificá-lo, criando rivalidades entre eles.
Essa atitude, se de alguma forma serviu para conquistar o
público, criou também uma animosidade entre os radioleiros e
discotecários que mantinham em segredo suas fontes de aquisição.
Segundo eles, a evolução musical na Jamaica é muito rápida,
e as músicas preferidas dos regueiros maranhenses não são
encontradas facilmente. Por isso, quem conseguir mais raridades
vai ter mais condições de assegurar o seu público e se manter em
evidência junto à “comunidade regueira”.
Por tudo isso, é possível compreender a importância do
reggae como conseqüência da dinâmica expansão midiática que
ultrapassa as fronteiras nacionais com uma velocidade inusitada
neste final de século.
Coisa de nego que mora ali
Pelas ondas de rádio e pelos clips televisivos o ritmo se
espalhou pelo planeta, redefinindo seu território de atuação,
determinando a criação de novas linguagens e estéticas
comunicativas em várias regiões, especialmente, nos locais de
grande concentração de população negra. No Brasil, este fenômeno
pode ser observado em regiões como Maranhão, Bahia, Baixada
Fluminense etc.
Para alguns regueiros maranhenses a herança negro-africana
é responsável pela concepção pejorativa que se atribui ao reggae e
também pelos atos de discriminação que vivenciam por serem
relacionados a ela.
Ainda que não estejam ligados a nenhum movimento político
organizado, muitos demonstram ter consciência de que a
discriminação se dá pela sua condição social e racial.
O reggae vem do negro, não é música dos brancos, por isso a
gente se identifica com ele (Ronaldinho, dançarino).
O reggae é música do negro, é uma música marginalizada. O
contingente de negros aqui no Maranhão é muito grande, é
imenso mesmo e tá sempre na periferia, onde tem sempre um
salão de reggae, sabe? É um ritmo negro, um ritmo que mexe
com a gente, no tempo que a polícia vivia baixando o pau na
negrada. Os brancos nem sabiam que o reggae existia. Agora
que o reggae virou moda, os brancos começam a invadir o
salão e a gente não tem mais espaço pra dançar (Guiu Jamaica,
dançarino).
Analisando o desenvolvimento das escolas de samba
cariocas, Clóvis Moura7 aponta para o papel integrativo do carnaval.
O mesmo argumento vale para as festas de reggae, bem como
para a maioria das festas populares.
Existe um caráter integrativo do ponto de vista sociológico
nessas festas, já que todos os participantes, a princípio, estão ali
com o mesmo objetivo da busca do lazer. Entretanto, não se pode
perder de vista que esse caráter integrativo é momentâneo e não
elimina as diferenças e nem as desigualdades, pois mesmo que
determinados grupos estejam participando de uma atividade comum,
essa participação não se dá em condições de igualdade para todos.
De fato, no carnaval essa relação pode ser constatada em
várias instâncias, podemos dizer que ela se expressa tanto na
exibição das fantasias, como nos espaços escolhidos ou oferecidos
para o lazer. Para os que compõem o minoritário quadro das elites
são ofertados espaços luxuosos, enquanto para a grande maioria,
resta o anonimato nas alas e baterias das escolas de samba, nas
cordas dos trios elétricos baianos, ou até mesmo, a exclusão dos
espaços de lazer.
Nesse sentido, o reggae é, para alguns, mais uma opção de
lazer entre outras, enquanto para os segmentos definidos como
regueiros que sofrem as consequências da exclusão, as alternativas
de lazer são consideravelmente mais restritas.
Dessa forma, o espaço para estes últimos, serve também,
como alternativa de auto-afirmação, uma vez que o objetivo é estar
entre seus iguais. Daí a presença do branco ser vista, por alguns,
como uma invasão, geralmente incômoda, já que este é a
representação do grupo que caracteriza o reggae como uma
atividade marginal, ameaçadora, passível de vigilância e controle.
Na verdade, a discriminação contra o negro não se dá por
conta do reggae. Ao contrário, o reggae, a exemplo de várias outras
manifestações que recebem o mesmo tratamento, é discriminado
por sua identificação como “coisa de negro” e, neste sentido, é
atingido também, pela desqualificação atribuída às atividades lúdicas
construídas pelos grupos negros na cultura brasileira.
As reações de vigilância e controle exercidas, por exemplo,
pela polícia e pela imprensa local refletem a concepção das elites
maranhenses sobre o reggae e seus freqüentadores, contribuindo
para a construção de uma imagem estereotipada do regueiro.
Por outro lado, a presença cada vez maior de grupos não
negros (jovens estudantes da classe média e até turistas nacionais
e estrangeiros) em alguns “clubes de reggae” possibilita ao regueiro
um auto-reconhecimento, levando-o a assumir essa condição como
uma identificação positiva. Além do que, quando é reconhecido
como um bom dançarino ou um bom DJ, ele (o regueiro) se sente
prestigiado frente à “comunidade”
Sem dúvida, as festas do reggae atribuíram visibilidade a
uma grande parcela da população de baixa renda em São Luís,
onde se concentram majoritariamente os grupos negros. Para estes,
dançar afasta as angústias do cotidiano.
Tinhorão mostra que desde o século XVI os batuques de
escravos representavam momentos de expressão de alegria e
felicidade, mesmo em meio às agruras da escravidão, de tal forma
que causavam espanto nos fazendeiros. Ele considera que
O fato de os batuques constituírem para os escravos africanos,
desde o século XVI, um dos raros momentos de livre exercício
de seus costumes originais, ia garantir a esses encontros uma
riqueza de expressões de que os colonizadores jamais poderiam
imaginar a extensão. (1988:45).
Essa diversidade de práticas rituais, religiosas ou de lazer
manifestadas pelos segmentos negros, escravos ou libertos,
ultrapassa a compreensão das elites que, presas às orientações
cristãs européias, sempre atribuíram às manifestações dos
afrodescendentes, um caráter de lascivosidade e desordem.
Legitimada entre outras coisas, por uma moralidade cristã, a
escravidão impôs aos negros escravizados a imagem do pecado,
controlando não apenas suas vidas, mas também seus corpos e
almas.
O próprio corpo é depositário do pecado, portanto, tem de
ser coberto e aprisionado para inibir seus anseios e transformá-lo
em simples instrumento de trabalho.
Maria Lúcia Montes mostra que esse mesmo corpo
neutralizado pelos horrores da escravidão, traz consigo a inscrição
simbólica dos confrontos entre a civilização ocidental e as culturas
profanadas pela diáspora.
Assim, ele se projeta como um elemento de desafio ao poder
das elites, inventando gingas e artimanhas que constantemente
apontam para a ambigüidade da moral escravista, a qual ao mesmo
tempo em que proíbe sua exposição pública, utiliza-se deste corpo
para satisfação de desejos. Ainda segundo Maria Lúcia Montes
(2000: 65)
Mesmo para o senhor, o corpo-coisa do escravo propõe a
experiência assustadora da ausência de limites: pode ser
surrado, torturado, dilacerado e morto, mas também apropriado
a bel-prazer, para satisfação dos apelos da carne.. Assim, as
marcas que designam esse corpo enquanto outro-mercadoria,
instrumento de trabalho, o primitivo a ser domado — também o
assinalam como objeto de repulsão, desejo e sedução.
Sem dúvida, em que pesem as várias e diversificadas
tentativas de controle exercidas em nome da religião, da ordem
social ou da moral burguesa, a dança sempre foi uma das mais
fortes expressões dos grupos humanos em toda a história da
humanidade: em busca da liberdade, em agradecimento aos deuses
pelas alegrias da vida, pelos ciclos de colheita nas sociedades
agrárias e da fertilidade em sociedades tradicionais ou, simplesmente
pelo prazer de se sentir bem.
A ginga, a malícia, a sensualidade, representam a explicitação
da rebeldia e expressam, também, as angústias e as alegrias que
não podem ser pronunciadas livremente, mas são representadas
por uma memória corporal que burla a vigilância das elites com
uma linguagem simulada.
Essas performances desenvolvidas pelos grupos negros que
viveram a diáspora, estão relacionadas com as lembranças
armazenadas, tanto individual como coletivamente, desde um
passado no qual a sujeição à condição de escravo ao mesmo tempo
em que bloqueava as condições de emancipação do indivíduo,
instigava-lhe a sociabilidade, com a qual se produziu a ligação com
o presente.
Assim, mesmo considerando as especificidades, existem
fortes aproximações culturais seja entre os povos do Caribe, da
Amazônia, ou da América Latina. Isto nos leva a afirmar que samba
de roda, merengue, maracatu, bumba-meu boi, capoeira ou reggae,
entre tantos outros, são vertentes rítmicas produzidas na diáspora
africana, que mobilizam segmentos das várias regiões estendendose
até a África, num percurso de ida e volta tanto nas ondas
midiáticas da indústria cultural como nas marés do Atlântico Negro.
Postado por:enilson nonato
Fonte: http://www.revistabrasileiradocaribe.org/revista_15.pdf